Damião abre a porta. É um homem de baixa estatura, magro, vestindo roupas claras, óculos, boina e avental. Seu semblante é amigável, típico de um bom anfitrião. Ele nos conduz por um caminho repleto de vegetação, um grande quintal com muitas plantas. Passamos por uma casa e, em seguida, entramos em um salão branco com amplas janelas e arte por todos os lados.
O ateliê está repleto de quadros e mais quadros, tintas, pincéis, telas. No chão, entre materiais de pintura, repousam grandes bandeiras em molduras de madeira, aquelas que, um dia, enfeitaram os mastros das festas tradicionais de Trancoso.
Há de trinta anos, Damião é o artista responsável por essas bandeiras.
Raízes
Os gêmeos, Cosme e Damião, nasceram em 1967 na beira da praia, na região de Tereré, em Trancoso, próximo à foz do rio. Na época, era comum que gêmeos do vilarejo fossem batizados em homenagem aos santos católicos padroeiros das crianças e da inocência.
Eles nasceram filhos de pescador, netos de festeiros e bisnetos de quem dançava o maribondo. Eram, ao todo, dez irmãos; Cosme e Damião vieram na segunda gestação. Cosme faleceu ainda bebê, assim como outros três irmãos de Damião.
Os sete irmãos cresceram no vilarejo quando não havia nem rede elétrica nem água encanada, em uma casa simples. Damião recorda-se da casa e, principalmente, da cozinha de taipa com um fogão a lenha, onde a avó fazia questão de manter a chama acesa, uma chama que nunca se apagava.
“tem coisas que são indescritíveis, ficam apenas na memória das pessoas que viveram Trancoso naquela época”, lembra Damião. “Um Trancoso que, para quem tem a minha idade e cresceu aqui, não existe mais”.
Trancoso, naquele tempo, era apenas o Quadrado; era ali que tudo acontecia. Os poucos moradores tinham uma convivência muito intensa: era uma comunidade genuína. Viviam de trocas, uma tinha o peixe, outro o frango, outro a farinha. Crianças corriam, brincavam e subiam nas árvores. Tomavam banho de rio e, mesmo com a chegada da água encanada na década de 1980, o hábito se manteve por muito tempo.
A ARTE
Foi aos doze anos, em 1980, quando se mudaram para a casa dos avós no Quadrado, que Damião começou a desenhar, na única escola do lugar, com a professora Higina. Em apenas uma sala, ficavam todos os alunos, de todas as idades e níveis, aprendendo juntos.
Nas datas comemorativas, a professora pedia aos alunos para ilustrarem o tema da aula. “Ninguém gostava. Mas eu gostava, tinha facilidade. Ai diziam: pede para Damião, que Damião sabe”, conta.
O que parecia brincadeira foi, aos poucos, abrindo caminhos. Em um tempo e lugar em que artista não era profissão, Damião trabalhou como ajudante de pedreiro, carpinteiro, garçom, pescador. “Artista era visto como diversão”, diz, com um sorriso. “Pintura não era uma coisa daqui”, ele afirma. Mas ele nunca deixou de pintar.
Por muitos anos, pintava apenas como um passatempo e ganhava materiais de visitantes que vinham de fora, mas em 1989 chegou em Trancoso um artista chamado Ivan Soares, que montou uma exposição com artistas locais, a SINAL (Salão Independente de Artes e Linguística). Damião aproveitou a oportunidade para expor os quadros que havia pintado ao longo dos anos.
Na primeira semana, ele vendeu todas as suas obras.
Empolgado, investiu mais tempo na pintura, mas só por volta de 1996 que conseguiu começar a viver unicamente de sua arte.
A LUZ E A MEMÓRIA
Damião gosta de pintar paisagens. Desde jovem, saía com sua tela e reproduzia o que via. Parava no Quadrado e retratava: muito verde, muitas árvores, desenhando folha por folha. Era ali que sua relação com o lugar ganhava outra dimensão.
“O Quadrado, para mim, tem um valor muito forte. Eu cresci no Quadrado. […] O Quadrado era muito mais vivo do que hoje. Não de comércio, claro, mas de pessoas vivendo.”
Suas pinturas são coloridas, cheias de verde e céu, retratando a igrejinha iluminada sob a luz do luar, o mirante e o mar ao fundo, as casas coloridas. São paisagens que parecem respirar.
Damião, autodidata, não se prende a estilos, mas sua linguagem é inconfundível: o traço, as formas, as cores. Tudo transmite aquilo que ele sente, carregado de memória. Quando questionado sobre suas inspirações, ele responde, sem hesitar: “Eu me inspiro muito em Trancoso. Me inspiro muito na luz, aqui tem uma luz, um verde, um brilho, umas cores que eu me inspiro muito”.
O CHAMADO DAS BANDEIRAS
Foi um amigo, Márcio, na época festeiro da festa de São Brás, quem o convenceu a pintar sua primeira bandeira. Damião hesitou, mas acabou aceitando. Na bandeira, pela falta de prática com retratos, desenhou o santo com olhos arregalados. “Diziam que era porque ele estava olhando o povo sem roupa na Praia dos Nativos”, ri.
Desde então, nunca mais deixou de pintar as bandeiras. Ano após ano, Damião renova as bandeiras das festas religiosas que mantêm viva a alma comunitária de quem cresceu em Trancoso.
“Uma festa que é feita a partir da doação de si mesmo e de cada um que está participando”, afirma.
A vocação para a pintura das bandeiras vem de família. Seu avô, Zé Domingues, era comerciante e uma das poucas pessoas da época que sabiam ler e escrever, sendo escolhido por alguns anos, para pintas as bandeiras. Zé Domingues faleceu quando Damião era criança, mas ele recorda com detalhes os momentos em que viu o avô pintando.
Damião conta que toda a sua família se envolvia muito nas festas tradicionais. Todos os seus ancestrais realizavam o ritual da dança do maribondo, a finalização da cerimônia. Ele relata, com orgulho, ter presenciado o bisavô fazendo a dança, depois o avô, o pai e, agora, ele própria dança.
Damião afirma que mais do que tradição, o ato de pintar precisa seguir o espírito coletivo que envolve as festas. “Fico feliz quando as pessoas ajudam a pintar as bandeiras, porque simboliza essa união das festas, que são feitas coletivamente pela comunidade. Acompanha o espírito coletivo das festas”, Damião afirma.
Para ele, o mastro com a bandeira, quando levantado, carrega toda a energia da festa e permanece ali ao longo de um ano completo, como um guardião das celebrações da cidade.
Nas telas, Damião costuma dizer que pinta o que viveu. Que o Quadrado, para ele, é quintal e tem forte valor sentimental. E conta uma história para comprovar: quando criança, passava horas olhando a paisagem, a árvore em frente à sua casa. Anos depois, ao nascer sua primeira filha, deu-lhe o nome daquilo que mais admirava na infância: Eugênia, como a árvore.
Hoje, suas telas percorrem caminhos que vão além das fronteiras do vilarejo, com obras espalhadas por todos os continentes, até no Alasca, mas continuam enraizadas nas mesmas paisagens que o formaram.
“Uma festa que é feita a partir da doação de si mesmo e de cada um que está participando”, afirma.
A vocação para a pintura das bandeiras vem de família. Seu avô, Zé Domingues, era comerciante e uma das poucas pessoas da época que sabiam ler e escrever, sendo escolhido por alguns anos, para pintas as bandeiras. Zé Domingues faleceu quando Damião era criança, mas ele recorda com detalhes os momentos em que viu o avô pintando.
Damião conta que toda a sua família se envolvia muito nas festas tradicionais. Todos os seus ancestrais realizavam o ritual da dança do maribondo, a finalização da cerimônia. Ele relata, com orgulho, ter presenciado o bisavô fazendo a dança, depois o avô, o pai e, agora, ele própria dança.
Damião afirma que mais do que tradição, o ato de pintar precisa seguir o espírito coletivo que envolve as festas. “Fico feliz quando as pessoas ajudam a pintar as bandeiras, porque simboliza essa união das festas, que são feitas coletivamente pela comunidade. Acompanha o espírito coletivo das festas”, Damião afirma.
Para ele, o mastro com a bandeira, quando levantado, carrega toda a energia da festa e permanece ali ao longo de um ano completo, como um guardião das celebrações da cidade.